Levados pelas Marés


Cinema feito com restos de lata, filmagens antigas, segredos de outros filmes que ficaram para trás, aqui para nos contar uma (fagulha de) história, um antigo romance de encontros e desencontros que se estende por duas décadas. Ainda é muito pouco, poucas películas de areia à deriva, quase um sussurro do oceano, mas as imagens que Jia Zhang-ke (ainda) possui são bonitas e o resultado se torna – mais uma vez – um relato do tempo, uma narrativa cujas correntes nos puxam, nos soltam, nos levam à lugares de calmaria e tempestade e assim, LEVADOS PELAS MARÉS, pela China que ainda resiste, incerta e certeira, nos encantamos pelas ondas, por esse filme-fluxo que vai e vem, como também foi EM BUSCA DA VIDA, Tao Zhao vindo e voltando, a musa sereia pelo qual o cineasta se encanta e AS MONTANHAS SE SEPARAM.

Sim, um filme em estado de dúvida, uma obra por descobrir, ou talvez mera colagem de fragmentos esquecidos, plástico reciclado de uma filmografia extensa, enfim, pedaços pescados de um passado rejeitado, cortes e exclusões que, agora, se entrelaçam de maneira imposta por um cineasta saturado pela pandemia. E nesse emaranhado de imagens, a marola de algo novo – uma trama que se constrói e se desfaz a partir de cenas inéditas, de momentos extraídos de outros filmes, apresentados em uma multiplicidade de formatos. E, assim, a obra se dissolve na espuma do ficcional e documental, mesclando memórias, narrativa e o próprio ato de filmar.

Qualquer tentativa de resumir alguma sinopse se diluiria no vasto oceano de possibilidades, mas, em essência, trata-se da jornada de uma mulher em busca do amor perdido, um navegar que a leva por diferentes paisagens da China. E de novo esse lugar (comum?), onipresente como pano de fundo e protagonista de outra marcha: a epopeia de um país-continente em constante transformação e decadência, controlado pelo capitalismo impiedoso ou o Partido Comunista, não importa, nada de novo portanto, tudo já amplamente visto, mas talvez pelo desafio de montagem (incluindo aqui o som), o cineasta refaz os passos, tentando uma abordagem, talvez mais melancólica (ou silenciosa?), para afinal selar um testamento, uma reflexão que busca avançar para o futuro, levando em conta as forças do progresso – como a inteligência artificial, a bioengenharia e a busca incessante de uma nação, que, como um leviatã, devora suas próprias transformações.

Dessa forma, o público, o cineasta, todos serão “levados pela maré”, assim entregue pelos eventos, sem controle ou direção definida, como um barco à deriva, empurrado pelas ondas. Jia sugere uma sensação de resignação ou aceitação diante de algo maior, seja a vida, o destino ou o próprio contexto que nos envolve. Ao mesmo tempo, há uma entrega ao alívio, ao abandonar a luta contra o fluxo das coisas e se deixar seguir, sem resistência. Afinal, uma outra (e linda) metáfora de um cineasta que não se cansa de se reinventar.

RATING: 73/100

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REVIEW · CANNES · TIFF · MOSTRA SP · ROTTERDAM

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