Emilia Pérez


É possível conceber um musical sobre vaginoplastia, cartéis, drogas e sequestro? Sim… Jacques Audiard ousa e realiza um milagre: um reality show de puro entretenimento, onde Zoe Saldana, Karla Sofia Gáscon e Selena Gomez nos (en)cantam. Não apenas elas, mas também as moderníssimas canções de Camille e Clément Ducot, que surgem do nada como um estrondo. O resultado? Um falso narco-trans-musical mexicano, com produção, conceito e visão turística deliberadamente blasé (ou muito francês?) e sotaque queer americano. Acima de tudo, um completo desprezo pelo perigo (ou ridículo?), misturando gêneros cinematográficos que raramente se cruzam: crime, musicais, melodrama… ame ou odeie, surte ou alucine, talvez como um sintoma genético de uma geração, fato é que Audiard se reinventa em domínios, indo além do Noir dO PROFETA e FERRUGEM E OSSO, da odisseia criminal de DHEEPAN, ou da boêmia ultrajovem de PARIS, 13º DISTRITO. E agora, novamente, surpreendendo para o bem, para “El Mal”.

Enfim, apenas uma história narrada em música e dança poderia dar conta, romantizar e expressar tantas contradições. Uma novela absurda, onde imagens, diálogos, músicas e coreografias desenham a trajetória de um chefe de cartel – um macho feroz, capaz de qualquer brutalidade, casado e pai de dois filhos – que, inesperadamente, sonha em ser mulher. Para realizar esse desejo inconfessável, ele recorre a uma advogada brilhante, ainda à sombra do reconhecimento, contratada sob o mais absoluto sigilo. Afinal, ninguém, nem mesmo sua família, pode descobrir essa transgressão aos códigos viris e patriarcais que sustentam os clãs criminosos. Juntos, eles buscam um cirurgião, onde quer que esteja, a qualquer preço, para realizar a grande reviravolta: a transição de Manitas para Emília.

E assim, confirmando um ritmo bipartido, o foco se desloca da transformação do corpo para a sociedade. Um panfleto tão surpreendente quanto necessário, que mistura tudo para transformar o todo e inaugurar um novo discurso – ou, ao menos, abrir o debate. Karla Sofia Gáscon emerge como porta-voz dessa jornada, movendo-se no vaivém entre imagem e música. A câmera a envolve, dançando ao redor, capturando um manifesto visual que oscila entre luz e escuridão, com cores que transitam do vermelho sangue ao amarelo dourado, da violência e paixão à riqueza e esperança, bailando sobretudo pelos lugares comuns, México, Londres, Tel Aviv, não importa, porque tal cinema é internacional, um cenário sem bandeiras que almeja o épico hollywoodiano e tenta, sem o devido orçamento, sem concessões, essa narrativa megalomaníaca que nos leva da imersão no tráfico de drogas às ONGs em busca de vítimas de sequestro. Um drama tenso, seco, talvez viril, cantado como em certos clássicos americanos ou franceses, sem sinos e assobios, e feito para – não se engane – o puro razzle dazzle das bilheterias (ou Broadway?), uma algazarra diria Rob Marshall em CHICAGO.

RATING: 70/100

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FILMES · CANNES · TIFF · SAN SEBASTIAN · RIO

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