A Mais Preciosa das Cargas


Michel Hazanavicius carrega consigo, A MAIS PRECIOSA DAS CARGAS em película, como quem sustenta nos braços um fardo luminoso e lancinante, um relicário de dor e redenção. Traz consigo um testemunho pungente da Shoá, um lastro de sombras que, paradoxalmente, se desenha com traços delicados, quase etéreos. Um filme que ressoa entre a brutalidade da história e a beleza da memória, entre o peso insuportável do passado e a leveza dos sonhos que ainda sustentam os que caminham. Talvez piegas, talvez devastador – mas inevitável. Um sopro que aviva brasas adormecidas, uma centelha que insiste em iluminar os escombros.

Mesmo quando as forças se esvaem diante da marcha inexorável da deportação, mesmo quando a esperança cambaleia à beira do abismo dos campos de concentração, o filme se ergue como uma travessia – um pesar, uma promessa, um pacto com a memória. Como se fosse um farol em meio às trevas, ele nos conduz, tateando os horrores, até o final. E, sejamos justos, por que não? Então, um cinema (rare)feito do passado, que não se perde, não se esgota e a cada percalço se refaz, pois nele pulsa o que nos define: ser humano – e, antes de tudo, ser mulher. Não se trata de uma celebração das vítimas, tampouco de um libelo contra os algozes. É, antes, um feixe de luz que atravessa a opacidade da história, uma narrativa de simplicidade diabólica, tão singela quanto avassaladora.

Para tanto, a animação surge como um véu que suaviza sem ocultar, que estiliza sem desumanizar. A escolha pela técnica não é mero capricho estético, mas um artifício que impõe distância ao peso esmagador do tema. Em um filme de animação, nada é real – e, paradoxalmente, tudo se torna ainda mais verdadeiro. Se outrora Claude Lanzmann e Elem Klimov expuseram as entranhas do horror em um espetáculo impossível de desviar o olhar, hoje a ZONA DE INTERESSE encontra na sugestão sua arma mais letal. E assim, feito um conto de fadas ao avesso, a história se inicia com um “Era uma vez um pobre lenhador e uma pobre lenhadora”, e à medida que os olhos dos personagens se abrem para a tragédia, os nossos se arregalam junto com os deles. A realidade, impiedosa, infiltra-se no relato como uma rachadura que se alastra na pureza de um vidro fino prestes a estilhaçar.

Mais do que um conto, talvez uma subversão do conto. Pois o que Jean-Claude Grumberg criou e que agora se refaz no cinema não é apenas original e profunda — é, sobretudo, uma trama que dilacera. Ao se apropriar da estrutura dos contos, o filme incorpora a infância tanto na forma quanto no tema. E, por isso, a escolha por uma estética sem artifícios, sem o brilho enganoso dos efeitos modernos, mas algo próximo aos primeiros filmes da Disney dos anos 30, com cores planas e figuras estilizadas. Uma narrativa que evoca a gravura e a literatura, uma animação que não se prende ao excesso, mas se enraíza na essência.

O resultado? Um golpe certeiro no âmago do espectador. A construção toda conspira para nos despedaçar e, ao mesmo tempo, nos recompor: a simplicidade cortante, os personagens desenhados com precisão quase cruel, a rede de solidariedade que se tece para salvar uma criança. Não, não é um filme sobre massacres, guerra ou morte. É um filme atravessado pela força irreprimível da vida. E, talvez, por isso, um filme que nos recorda, entre lágrimas e suspiros, que ainda há razões para ter esperança.

RATING: 68/100

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REVIEW · CANNES · RIO

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