A Garota da Agulha


Já pela fotografia, um arrepiante gótico noir, A GAROTA DA AGULHA se impõe como uma experiência inquestionável e inesquecível, que transcende a mera imagem. E assim desde o primeiro olhar, donde somos arrastados para um labirinto de rostos que evocam A HORA DO LOBO, de Ingmar Bergman – espectros de um sofrimento iminente, sombras de um tormento que nos devora antes mesmo de compreendermos sua forma para, então, nos tragar ao abismo, um trem fantasma pelo inferno de um pornô miserável, senão o conto de uma mulher abandonada, faminta e dilacerada pelo abandono. Um filme de Magnus von Horn, mas que poderia ter saído das profundezas de Béla Tarr, dO HOMEM DE LONDRES que se arrasta em seu cinismo existencial. Então, no escuro, um lampejo, um estalo grotesco na noite, e surge uma imagem expressionista do horror: um homem de cartola, sombra ameaçadora na tela, sua presença pura tensão, amplificada pela sinistra sonoplastia. De novo, é Horn, mas poderia muito bem ser Fritz Lang, nos lembrando de M – O VAMPIRO DE DUSSELDORF. E essas duas cenas são apenas o prelúdio — um fragmento de um pesadelo contínuo, uma sucessão de horrores entrelaçados. Poderia ainda invocar FREAK SHOW ou VERA DRAKE, mas no fim, o cineasta constrói, com um toque único e sufocante, algo que se recusa a ser copiado, algo irremediavelmente singular. Um pesadelo claustrofóbico que nos envolve lentamente, nos consome. Eis o filme.

Ou, quem sabe, um terror implacável, porque sua história é verdadeira: um conto sombrio de almas indesejadas, de figuras que vagueiam como fantasmas à margem da sociedade, lutando para se tornar visíveis num mundo que os empurra para a escuridão. Não se trata apenas dos excluídos, mas do que esses corpos destituídos de valor são forçados a fazer para alcançar o desejo de ser visto, de ser digno de um olhar, de uma presença. Este é um cinema atemporal, uma tragédia universal que se desdobra de diferentes formas, dependendo do lugar, do público e das correntes políticas que o envolvem, mas a protagonista unifica a mesma luta desesperada por corpo e direitos. E o filme, com sua natureza inquietante, nos arrasta para o debate — mais precisamente, para o lugar das mulheres. Elas, fortes e independentes, personagens cruéis, sobrevivendo num mundo frio governado por homens fracos, inúteis e submisso.

É um cinema imerso no preto e branco, governado por um terror expressionista, onde caretas, carrancas e contrastes são apenas os sinais do sofrimento. Pessoas desfiguradas pela guerra e outras tragédias, bebês chorando e morrendo, ruídos horríveis que emanam de forças psíquicas profundas e obscuras… E é nesse tribunal de condenação que o cineasta constrói seu melodrama cruel, onde a agulha é inserida na carne. O público se vê diante de um massacre steampunk, uma imagem cheia de sombras, onde a protagonista se dissolve aos poucos, desaparecendo entre chaminés, fábricas e maquinários. Ela, no fundo mais imundo da existência, rejeitada, sangrando, sofrendo a cada segundo, com ela o bebê bastardo que carrega, o marido deformado que surge, e o mundo que a aborta sem piedade. Ou em outras palavras, a versão de Lars Von Trier para ANORA.

RATING: 71/100

TRAILER

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FILMES · CANNES · TIFF · RIO

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