Reflexão

“O mundo em que vivo me repugna,
mas sinto-me solidário com todos os homens que nele sofrem”
Albert Camus

Pode ser a visão de um pombo, uma cena no drive-in, a fatídica guerra ou um ataque de cães… o sentimento de absurdo, como descreve o filósofo Albert Camus, pode surgir a qualquer hora “numa esquina qualquer, no rosto de um homem qualquer”. Quisesse o cineasta Valentyn Vasyanovych que fosse o nosso, o público diante de um homem no vale das sombras, absurdo assim, o mundo absurdo aos olhos desse homem que se desfaz. Ele – ou nós? – diante de uma janela de vidro e sentimentos, os muros separados do mundo imprevisível, inapreensível e abrangente, senão as sinas do tempo, a morte, os traumas… outros cineastas já filmaram esse absurdo. Roy Andersson, por exemplo, o fez em UM POMBO POUSOU NUM GALHO REFLETINDO SOBRE A EXISTÊNCIA, mas aqui, há outra “reflexão” pendente: a de um pombo que vislumbrou o céu e se espatifou no chão.

Um filme que evoca a história recente, um cinema já (re)visto por Sergei Loznitsa em DONBASS, mesmo o trauma latente, esse o vimos em SNIPER AMERICANO, de Clint Eastwood. E aqui, novamente, às voltas com o conflito armado de 2014 entre o exército ucraniano e as tropas russas, a guerra de um homem simples que toma uma decisão emocional, compreensível para muitas pessoas em seu país – ele quer ajudar, salvar as vidas dos soldados na linha de frente. Ele, um simples cirurgião civil, não um herói no sentido convencional, nem um soldado treinado, mas alguém disposto a auxiliar e, portanto, envolto no horror, diante do horror, no melhor ponto possível para observar as idiotices de uma guerra, suas regras absurdas e os perímetros do terror. (Repare que, nessas cenas, não existe vidro ou qualquer separação com o mundo exterior: aqui, o confronto é direto).

E sobrecarregado pela (ideia de) guerra, a projeção avança sem mostrá-la por uma bolha alucinógena, o conflito que assopra pelos combatentes, as cinzas da fornalha que assola cada um e leva consigo a ingenuidade, a força, a coerência, enfim os ideais de um mundo perfeito. Ao protagonista, cabe a tortura de respirar e verificar a respiração. E nós, vê-lo nessa desorientação progressiva, uma interpretação muito física de Roman Lutskyi, isso na mera admissão de seus feitos, a culpa, as cicatrizes, respirar e ver o céu, talvez Deus.

Mas é em casa, em sua amada pátria e diante de um apartamento vazio, que se percebe o absurdo da guerra, o exercício da idiotice. Novamente vemos a janela ao centro, a imagem atirada ao coração, o vidro embaçado da realidade: ali, em segundo plano, vemos o mundo passar pela vidraça e, diante dela a parábola de um homem que, como todos os outros “veteranos” que ainda não morreram, mas estão morrendo, mortos por fogo amigo, mortos por seu próprio país, se fecham na “segurança” de seus próprios mundos. São fantasmas que vagueiam, portanto, que não vivem, apenas sobrevivem, sem espaço para se mover, sem um futuro para acendê-los. Apenas esse presente miserável, inconsequente. Não à toa, os enquadramentos fechados, a câmera fixa e frontal para amplificar o claustrofóbico “tableau vivant”, afora a tonalidade cinzenta. Vasyanovych pouco filma a guerra, mas sugere. Seu filme, ao invés, mostra o conflito interno, questões que operam sobre a vida e a morte, a alma e o corpo. Tal reflexão é ainda mais presente na menina que faz o papel de interlocutor nessas questões existenciais.

Em um jogo de espelhos, REFLEXÃO contempla a humanidade através de recortes e paralelos: o ricochete de opostos, às vezes na mesma cena através de vitrais para contradizer o que se vê em primeiro plano, outras durante a própria projeção, como o desdobrar do jogo de paintball em um cenário de guerra, ou a reversão de uma mesa de cirurgia (para trazer alguém à vida) em um bloco de cimento (para condenar alguém à morte). Tão logo, um caminhão de ajuda humanitária se transforma em maquinário de cremação e mesmo a cena final, tão destoante, nos permite enxergar o que não se vê: que a resiliência do amor familiar pode prevalecer, embora a cena anterior diga o contrário. Talvez seja uma ilusão. Ou um “final feliz” refletido tão somente para nos fazer espatifar no chão. Não há respostas fáceis nesse filme.

RATING: 74/100

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FILMES · VENEZA · MOSTRA SP

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