O Perdão

Novamente do Irã, outro filme sobre o totalitarismo e pena de morte, um tema já consagrado com o Urso de Ouro em Berlim com NÃO HÁ MAL ALGUM, de Mohammad Rasoulof, também longamente debatido nos filmes de Reza Dormishian – I’M NOT ANGRY (2014) e LANTOURI (2016), agora nesse O PERDÃO, quase como um epílogo, contudo mais complexo, mais dramático, aquele roteiro bola de neve que só cresce e se complica ao ponto de explodir em uma situação irreversível. Uma grande interpretação de Maryam Moghaddam (que codirige essa história ao lado de Behtash Sanaeeha) e esse conto que não cabe julgamento porque cada personagem tem seu lado e que Deus ore por todos.

E de novo, um filme de memórias dolorosas e amargas, essa velha ferida que atormenta a alma e não cicatriza, aqui a história de “Mina” – a mesma história de tantas iranianas e definitivamente de muitas pessoas no mundo -, então pode-se dizer verídica: um ano após a execução de seu marido, a protagonista é chamada ao tribunal. “Seu marido era inocente. Cometemos um erro. Lamentamos muito ”, lhe dizem. O que segue é uma triste balada de agonia, não só da triste viúva, mas dessa mulher “sozinha” vivendo ainda nesse país de leis misóginas. Então, um filme de anseio por justiça há muito perdida. Não só a justiça que se dissimula entre as nuances de uma lei, mas também em uma luta de igualdade de gênero. Sem dúvida é um filme cheio de violência contra a mulher, já o era antes pelas dificuldades econômicas, a extensa burocracia, a falta de moradia acessível, a filha deficiente, mas todo esse drama se somatiza ainda mais pelo fato dela ser mulher e, portanto, seu status quo perante a sociedade de Alá.

Curioso que a imagem que a película nos vende é a de um Irã contemporâneo, um país moderno, industrializado, embora todas as circunstâncias – inclusive o título – se refira a uma antiga parábola do Alcorão que sugere algo mais antigo e simbólico, senão as leis da Sharia Islâmica: uma vaca em cerimônias religiosas é geralmente um sacrifício. No filme, a vaca é a metáfora de um inocente condenado a morrer. O “Cow Surah”, um capítulo do Alcorão, está relacionado com “Qessas”, um termo de lei sharia para a violação de outras pessoas, como expressa na máxima do “olho por olho, dente por dente”. A pena para um Qessas é uma forma de restituição, onde um valor monetário é atribuído à vida humana e até mesmo às partes do corpo. E tal metáfora é um tema recorrente ao longo da narrativa, o tal “sacrifício” nos sonhos da protagonista com a vaca ou no uso do leite na cena final.

Esteticamente é um cinema de muitas composições e confrontos, muito close-up e cenas cuidadosamente emolduradas. Muitos elementos arquitetônicos – janelas, grades, escadas para estruturar os frames -, isso para criar certa atmosfera e claustrofobia, também a noção de liberdade e a falta dela, de certa forma para encenar essa “metáfora” que amarra injustiça com justiça e desorienta os censores – tão comuns no cinema iraniano. Quase todo o cenário simula uma prisão, todas as cenas se sentem sob forte aparato de vigilância. E o cinema ali, como uma janela para permitir que o público veja o que o povo iraniano de fato vive. Tal julgamento é devastador, pode passar imperceptível ao expectador leigo, como o fato da menina surda-muda se chamar BITA, um filme pré-revolucionário de 1972, cuja protagonista hoje está exilada nos EUA, assim como muitos artistas iranianos nas mesmas circunstâncias, também deportados e/ou em prisão domiciliar. Ou mesmo o juiz se chamar “Reza”, o mesmo nome do cineasta que citei na introdução, e cujos filmes estão proibidos no Irã. O fato desse easter egg passar despercebido é o que torna esse filme singular. Um grande filme, faça-se justiça.

RATING: 73/100

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FILMES · BERLIM · SAN SEBASTIAN

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