Fogo nas Montanhas

Desses filmes etnográficos de velhos costumes, vidas pastorais e pequenos desfavorecidos, uma aldeia separada do resto do mundo, há muito tempo esquecida e engolida pelas montanhas, e donde se constrói uma parábola de contradições e tensões ocultas sob um aparente refúgio conciliatório. E esse é o limite de um filme muito bonito, de rigorosa (não) narrativa, um cinema muito radical e extremo, cuja visão, tão pura e pictórica, demonstra com todas as suas peculiaridades a paisagem humana, os ritos de passagem de uma cultura himalaia, senão uma família comum, pai, mãe, filhos… a cunhada, todos desejando contar uma história e mostrá-la ao mundo.

Então, Ajitpal Singh filma a vida como ela é: a imagem nas cores de Utaracanda, a câmera no ombro para seguir a matriarca, todos os seus passos na pirambeira da montanha, os planos de tirar o fôlego, tudo denota certo pedigree tibetano, um quadro vivo ou quase isso, com personagens moldados ao longe, fazendo o que se deve fazer, os turistas indo e vindo, cenários e gente se apresentando por detalhes irrelevantes para que o espectador – com muito esforço – seja capaz de montar qualquer imagem para ler. Parece que o menino está doente, ele não anda, então a mãe deseja levá-lo montanha abaixo para os devidos tratamentos médicos, enquanto o pai quer levá-lo montanha acima para um ritual xamânico. Nisso, modernidade e animismo dividem espaço de tela, os dois protagonistas nesse embate familiar, enquanto o próprio menino se refastela de doce. O tempo passa, o filme anda desarticulado, parece mesmo que lhe falta uma “estrada”: a mãe está esperando a estrada ser construída, ela pediu ao marido, mas esse falhou; ela pediu ao governo, mas esse falhou. E a narrativa não sobe, nem desce, dá voltas, num tempo circular e pré-histórico onde nada acontece, mas você percebe as camadas, todas as conexões, esse fluxo intermitente entre tradição e atualidade na vila, ora um terreno seguro, ora um terreno ausente.

De fato, um lugar novo donde o acesso é muito restrito, todo feito no mais rudimentar, com não atores, não figurinos, não cenários… Ajitpal vai filmando o que está ali, catando as historias do chão e as costurando num cinema-fuxico com muito improviso, muita luta, entregue de corpo e mente como se tudo fosse uma grande aventura, mas também um certo melodrama que esconde sob a pele, muita violência, discriminação e pobreza, a família brigando entre si, como tantas outras, a protagonista querendo construir essa estrada, mas em um nível muito mais profundo, porque ela é o ganha-pão, a matriarca da família e exige respeito dos seus. A cena final é a prova, uma chance de gritar, dançar, bater e nesse transe clamar por justiça, se não no plano físico, ao menos entre as divindades. Então, que comece o Jagar! Que seu menino ande! E nós, o público estarrecido, veremos a mulher finalmente encarnar o leopardo, o FOGO NAS MONTANHAS, como diz o título. E sim, é sublime.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com a diretor, em Sundance
RATING: 74/100

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REVIEW · SUNDANCE · MOSTRA SP

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