Lua Vermelha

Em algum lugar do mar, um marinheiro gritou que estava se afogando e o diabo respondeu. Ele sabia, todos sabiam: o mar é o diabo. Ele engole os cadáveres. Ele os devora. Devora o tempo… com ele, LUA VERMELHA nos afunda nesse mar, nos arrasta para o fundo, na penumbra entre a vida e a morte, o imaginário e o real. “Aqui, os mortos não vão embora: eles ficam conosco”. E sob o lamento dos afogados, das baleias, das sereias, o tempo congela, toda uma vila estática diante do luto, essa estranha sensação de não pertencimento, a lua no zênite, as pessoas catatônicas, olhando ao longe, para o nada, o vazio. Em algum lugar, os sinos badalam tristeza e sangue, sangue, sangue, ninguém entende o rugido? Sangue é o que diz, ele quer nosso sangue. Que barulho terrível. Que paz. Que horror. Já faz quanto tempo? Mil anos… mil anos sob essa lua vermelha. E logo, nosso corpo está dormente, as mãos estão inertes, o ar está denso. Diante da tela (ou do espelho?), vemos o filme-monstro acabar conosco. Tirar nossa vida aos poucos. E extasiados – alguns entediados -, continuamos presos aos corpos, ali inertes. Isso ontem, há cem anos, ou talvez amanhã ou daqui mil anos: Lois Patiño filma a morte e nos amaldiçoa.

O filme fala de fantasmas, de feiticeiras, de monstros, mas a historia é real: nos conta a vida (ou morte?) de Rubio de Camelle, um mergulhador galego que resgatou os corpos de mais de quarenta náufragos perdidos no mar. Tal feito se entrelaça com o folclore da região, esse universo donde “o oceano é um animal que respira duas vezes ao dia”. E além disso, além da fronteira tênue do ser/não ser, surgem as figuras arquetípicas da bruxa ou da Santa Companhia, mulheres que habitam entre os dois mundos, se comunicam com os mortos e os guiam pela jornada.

Nesse cinema, todos estão paralisados, perdidos no fundo de suas próprias mentes. Assim como na pintura de Jean-François Millet, “Angelus”, que foi uma referência importante para o filme, segundo o diretor, “as pessoas não estão artificialmente paradas, mas sua imobilidade parece resultar de um momento de devoção e meditação ou mesmo de luto. E é em torno dessa imobilidade introspectiva que a fotografia se articula. Uma estranha forma narrativa que nos permite explorar o caráter maleável do tempo, passando de seu fluxo na natureza à uma suspensão temporária causada pela introspecção, ou um tempo mítico (atemporal) das lendas.”

Sim, o filme é curto, mas parece que o habitamos há séculos. Nesse sonho, os mortos muito de perto (para que não desapareçam), também muito de longe (para que haja algo), as bruxas nos cobrindo de lençóis, todo o povo da aldeia nesse véu do esquecimento, nossa respiração cada vez mais fraca, a maré indo e vindo e o público se desfazendo como pedras velhas, lá pelo ultimo lençol, o último habitante, o marinheiro finalmente acorda e nos arrebata. E sob o olhar do monstro, percebemos que LUA VERMELHA é um velório misterioso, a cerimonia de adeus ao irmão afogado que se vai. Todos sabíamos. Ele sabia. O mar é o diabo.

RATING: 76/100

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FILMES · BERLIM · MOSTRA SP

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