Uma Criatura Gentil

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Nas margens da ficção, do documentário, dentre tantos rostos e historias, ali, na Rússia, Sergei Loznista filma um conto de horror. E também uma incursão ao interior do ser humano, um trem fantasma pelo que existe de mais profundo, essa fortaleza impenetrável, abandonada e esquecida, construída pelos homens, encarcerada pelos homens, donde o homem é prisioneiro. E é por esse pensamento-pesadelo, sob o texto de Dostoievski, o plano sequência, o mergulho no interior de tantas vidas, tantos personagens que vão morrendo, sendo mortos, no passado, no presente, nesse filme atordoante, o pensamento dando voltas e mais voltas, sem saber o que fazer ou agir, é ali que se busca a verdade. E é ali, aonde as pessoas mais calmas e mansas atingem um limite. Mesmo UMA CRIATURA DÓCIL. Mesmo você.

Então, o cineasta filma essa mulher, a tal criatura gentil, senão Vasilina Makovtseva pela metáfora, a alucinação, a submissão. Toda uma humanidade em desordem. Todos os pensamentos em ação, um fluxo onde substância e forma são indivisíveis. E é nessa essência, no mais ínfimo, no mais pictórico, que a história transborda de imagens que respiram. O filme se desenha em rostos e close-ups. A tela se expande. A paisagem é esculpida e carregada de emoção. A câmera não treme. Nessa estrada-mundo, não se perde, se é.

E perdidos nessa viagem pela cidade calabouço, vemos a via-crúcis de alguém em busca do outro: Dessa mulher qualquer, o rosto impassível, magérrimo, pálido, sem qualquer sorriso ou expressão, apenas o estoicismo e algumas latas de sardinha, bombons, cigarros e pêssegos em calda, a vagar pelo Realismo de Gogol e Saltykov. E isso inclui o cárcere da violência social, a hipocrisia de um sistema, os códigos de silêncio, donde não é possível escapar, evitar ou fugir. Pelo contrário, gira em círculos, nos engole no mau sonho, na letargia, na inercia. Um grande palco picadeiro para o grosseiro, senão o absurdo, o mais atroz e cruel, e de novo, e de novo, e novamente, numa repetição infinita do inferno.

Na tela, tenta-se o humor. Não existe. Tenta-se a ironia. É triste. Estamos presos na miséria, na penitenciaria de um cinema que nos engole em cinza, no tijolo frio, no concreto repulsivo. Diante de pessoas feias, no amargor de suas histórias, nesse fatalismo niilista, na completa aniquilação do (ser) humano. São “Os Demônios” (de Dostoievski?). São as “Almas Mortas” (de Gogol?). É, afinal, a Rússia de Loznitsa e, sim, dá desgosto, queira ou não, ame ou deixe. Esse é o juízo final.

RATING: 73/100

TRAILER

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REVIEW · CANNES · RIO

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