Não há esperança para os Ursos, ou talvez haja.

Para a imprensa estrangeira, para toda Berlinale, todos sabiam, o Urso de Ouro seria de Aki Kaurismaki. Ele, inclusive. E foi com extrema surpresa, diria estupefação que o anuncio foi feito por Dora Fourati, não o de “Melhor Filme”, mas o de “Melhor Diretor”. E, diante da ovação, das palmas, vimos, então, um cineasta incrédulo, sem ar, os olhos vermelhos de um choro que não virá, porque está engasgado e continuará. Cambaleante, ele mal se levantou. Dora com cortesia lhe levou o Prêmio e o microfone. Ele não queria falar, não havia palavras, não havia chão. Depois, ele se sentou, agradeceu a equipe, seu produtor, os atores e mais ninguém. Seu urso, uma peça de metal qualquer, ficou ali esquecido. E eis O OUTRO LADO DA ESPERANÇA.

O filme de Kaurismaki seria a síntese perfeita de um Festival que se gaba por seu panfleto político. Na tela, é um conto “underdog”, como tantos outros, mas esse tem uma peculiaridade especial, porque é tão atual e global como nenhum cinema já foi. Mesmo nO PORTO, que já abordava esses temas – a misericórdia, a compaixão e a solidariedade militante -, não se via um filme assim porque, “do outro lado”, a retorica é mais cruel, visível e palpável. Ali, se filma a “guerra”. E nessa guerra, na sarjeta, o cineasta filmou todo um processo de desumanização, numa fita de emergência e aceitação, mesmo que seja na velha cartilha de cores vivas e rostos sérios, melancolia e rock´n´roll. É tendencioso? Sim, é, mas essencial para um mundo que cada vez mais se isola em uma bolha. Uma pena.

Da tristeza, ao menos a felicidade… FÉLICITÉ é uma coisa viva. É sentido e sentimento. É inspiração profunda que anima. Que encanta em todos os seus contornos. É um poder sempre em movimento. É uma rainha que incentiva todas as forças, de todas as inúmeras formas por sua simples presença. Aquém da santidade, da inefabilidade, do sigilo da noite, distante do mundo, acima das memorias, dos desejos, dos sonhos, é alegria multicor, esperança vã, talvez paixão. Félicité respira, engole, tem um coração humano. É negra africana. Mulher. Mãe. Também é música. E aos sons dos atabaques, dos tambores do Kasai Allstars quem se arriscar a esse cinema-feitiço, certamente se encantará. Alguns torceram o nariz, mas os Ursos gostaram e hipnotizados escolheram esse filme-afrodisíaco para o Urso de Prata de Melhor Filme. Talvez haja esperança, afinal.

Mas há esperança… certamente que há. DE CORPO E ALMA, de noite e de dia, Ildiko Enyedi filma apaixonadamente uma história sobre a condição humana, de como as pessoas vem e vão em nossas vidas sem ao menos termos a oportunidade de conhece-las. Filma duas pessoas reclusas, um homem e uma mulher escondidos em sua superfície plácida, estéril, cinza. Quanta dor, desejo ou paixão, ali, dia após dia, a andar pela rua, em seus afazeres e pensamentos, tão mudas e desajeitadas? Mas a noite, através dos sonhos, os mesmos sonhos, o estranho, o inusitado, uma lição de vida: De dia, abatem carne. À noite, abatem o coração. E eis O FEITIÇO DE ÁQUILA em húngaro, um conto sobre nascimento, amor e morte, seus rituais e seus mistérios, no cenário mais incomum possível. Na neve, os Ursos viram uma história de amor, choraram, se apaixonaram, e ali se encantaram por essa cineasta em seu filme de estreia. Sim, Urso de Ouro, surpreendente. Merecido. Fica aí a esperança.

E se houve esperança, faltou um tiquinho de ousadia… seria épico, eterno, extraordinária a coroação de Daniela Vega, UNA MUJER FANTÁSTICA, como Melhor Atriz… não foi. Os Ursos preferiram A CRIADA, senão Kim Min-Hee na praia, sozinha, e à noite, nesse filme descomunal de Hong Sang-soo sobre as forças do amor. A mesma força que impulsiona e desanima ANA, MON AMOUR, Urso de Prata de Melhor Montagem, ou mesmo AS NOITES BRILHANTES, de Thomas Arslan que rendeu à prata da casa, ao ator Georg Friedrich, o Urso de Prata.

Mas e Daniela Vega? Como uma diva de um cinema antigo, do CREPUSCULO DOS DEUSES, ela desceu e flutuou para o palco, logo depois do discurso de Sebastian Lélio e Gonzalo Maza pelo Urso de Melhor Roteiro. E ali, sob todos os holofotes, todos os flashs, “só nós e as pessoas maravilhosas lá no escuro, ela estava pronta para o close-up” e lá brilhou. E foi nesse momento que os Ursos se arrependeram, não por Kaurismaki, mas pela oportunidade perdida de dizer ao mundo que o cinema não tem gênero, cor, raça, religião, linguagem ou qualquer outro artificio que pregue “o outro lado da esperança”. Ficaram ali, sim, DE CORPO E ALMA, corretos em cada prêmio. Faltou apenas um detalhe para ficar perfeito, diria fantástico.

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FESTIVAIS

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