32ª Mostra SP: Tributo à Hugh Hudson

A história da indústria cinematográfica britânica tem bem menos seqüências de novos ciclos do que sucessivas e breves explosões individuais em resposta a circunstâncias históricas. Um dos casos mais significativos iniciou-se no final dos anos 1970 por David Puttnam, importante figura do mundo publicitário. Havia uma calmaria no cinema britânico depois do “boom” do financiamento norte-americano na década dos anos 1960 e Puttnam decidiu que era hora de lançar alguns ambiciosos diretores de comerciais de televisão na grande tela como desafio à geração dos chamados “movie brats”, que faziam remakes e que dominavam Hollywood.

Os principais cineastas que Puttnam tinha em mente eram Hugh Hudson, Ridley Scott, Adrian Lyne e Alan Parker. Todos tinham dirigido grandes sucessos e a maior surpresa das estréias produzidas por Puttnam, sucesso de crítica e de público, foi o filme de Hudson CARRUAGENS DE FOGO (1981). Foram quatro dos sete Oscar para os quais havia sido indicado: Melhor filme, roteiro original, música e figurino. Agarrando seu Oscar no palco em Los Angeles, o roteirista Colin Wellan proferiu o célebre e arrogante desafio, “os britânicos estão chegando”.

Nascido em 1936, Hudson foi o mais velho dos protegidos de Puttnam e, por qualquer avaliação que se faça, o mais complexo. Nasceu em uma família abastada, estabelecida no condado de Shropshire, e educou-se em Eton. Depois de dois anos no regimento de cavalaria na Alemanha, rejeitou os privilégios, recusou-se a entrar nos negócios da família ou freqüentar a Oxbridge. Apaixonou-se por cinema, estudou Edição em Paris antes de começar a trabalhar em publicidade, dirigindo premiados comerciais de televisão e fazendo documentários geralmente para empresas as quais ajudou a criar. O mais célebre (embora raramente visto) documentário é o deslumbrante FANGIO: UMA VIDA A 300 KM POR HORA (1975), elegante retrato do piloto argentino de Fórmula 1 Juan Fangio. Um de seus fotógrafos era Kubrick, que foi colaborador pontual de John Alcott, que mais tarde faria o filme de Hudson GREYSTOKE: A LENDA DE TARZAN. Outro foi o francês Bernard Lutic que foi diretor de fotografia nos filmes REVOLUÇÃO, TEMPO DA INOCÊNCIA, ÁFRICA DOS MEUS SONHOS, bem como trabalhou com Hudson no filme de Alan Parker O EXPRESSO MEIA-NOITE.

Hudson rejeitou inúmeras ofertas antes de descobrir em CARRUAGENS DE FOGO os temas certos nos quais se engajou. Incluem-se questões de discriminação de classes, preconceito racial, nacionalismo, rebelião contra as instituições e contra a autoridade moral. Essas preocupações existiram em três filmes que, em retrospectiva, constituem uma trilogia informal, tratando-as com mais profundidade e sutileza como as definições ampliadas e levadas de volta ao passado, a partir dos anos 1920 do século XVIII.

Desdobrando-se em flashback a partir de 1960, o lírico e ricamente realizado CARRUAGENS DE FOGO cobre os cinco anos que antecedem os Jogos Olímpicos de 1924 e os efeitos sobre os três outsiders. O primeiro, o escocês pregador e filho de missionários Eric Liddell (Ian Charleson), um grande atleta cujos princípios religiosos o proíbem de correr aos domingos. O segundo, o grande corredor Harold Abrahams (Ben Cross), tratado com condescendência pelos professores anti-semitas da Universidade de Cambridge por sua descendência de imigrantes judeus e por sua vulgar ambição. O terceiro, Sam Mussabini, um paternal trabalhador, treinador de origem árabe-italiana, protege Abrahams; como um prenúncio de profissionalismo toca o sino da morte sobre a tradição da classe amadora. A partitura de Vangelis é o ritmo da bateria, o tom do filme é triste e premonitório.

GREYSTOKE: A LENDA DE TARZAN, O REI DAS SELVAS (1984) reservam seis décadas do primitivo filme MIM TARZAN, VOCÊ JANE envolvidos com o romance original de Edgar Rice Burroughs de 1912. Conta a história de como John Clayton, o futuro Conde de Greystoke, criado por símios na África, após a morte de seus pais num naufrágio, retorna à Inglaterra no final do século XIX, para enfrentar a família aristocrática. Somente com o avô paterno (excelente desempenho de Ralph Richardson em sua última aparição no cinema) é que estabelece um vínculo amoroso que transcende o preconceito e a ignorância. Finalmente, regressa à África acompanhado do explorador belga (Ian Holm, como Mussabini em CARRUAGENS DE FOGO) que se transformou em seu pai substituto e da dedicada namorada Jane. Numa cena crucial, John abre uma nova ala do Museu de História Natural dedicado a Charles Darwin. Este é um filme de beleza trágica.

A mais complexa e sub-avaliada foto de Hudson, REVOLUÇÃO (1985) é uma obra prima imperfeita que acompanha o contrastante sucesso de três pessoas pegas pela turbulência social e política da Guerra da Independência americana, onde proliferam pais reais e substitutos e um colonizador britânico mata o pai para se tornar um novo republicano. Os verdadeiros rebeldes do filme são uma idealista da classe média de Nova York (Natassia Kinski), que desafia os pais conservadores por participar da revolução. Um analfabeto caçador de peles (Al Pacino) tenta não se envolver numa causa que não consegue entender e é enganado pelos dois lados e procura proteger o filho que lhe restou. Um autoritário sargento-major inglês (Donald Sutherland) tenta, ano após ano, fazer o seu dever e servir ao paternalista rei. Um colorido e irônico épico retrato sobre Griffith, DeMille e Brecht, foi cruelmente e casualmente descartado em 1986. Tal como aconteceu com o injustamente rejeitado filme de Michael Cimino O PORTAL DO PARAÍSO, chegou o momento de REVOLUÇÃO receber o apreço que merece da audiência.

Desde REVOLUÇÃO Hudson fez somente mais três longas – o filme sobre problemas sociais DE VOLTA PARA CASA (1989), único filme feito na América; a encantadora história sobre rito de passagem TEMPO DA INOCÊNCIA (1999), sobre crescimento numa excêntrica família escocesa de família de classe média alta; e ÁFRICA DOS MEUS SONHOS (2000), a verdadeira história, uma reminiscência de ENTRE DOIS AMORES, uma aventura de aristocratas italianos no Quênia. O novo projeto coloca Colin Firth e Geoffrey Rush numa versão cinematográfica de Homenagem à Catalunha, o clássico livro de memórias do antigo ex-aluno rebelde de Eton, George Orwell, sobre sua participação na Guerra Civil Espanhola. Em 1941, pouco tempo depois de Homenagem à Catalunha, Orwell escreveu: “a família cujo controle está nas mãos dos integrantes errados – talvez seja o mais próximo que se possa chegar para descrever a Inglaterra numa frase”. Poderia ser a epígrafe da obra de Hudson.

Por Philip French (The Observer)

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FESTIVAIS

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