32ª Mostra SP: Carta Branca à Wim Wenders

Wim Wenders tem carta branca da Mostra Internacional de Cinema para programar o que quiser. Ele é um dos autores mais presente ao longo das edições da Mostra e da nossa história de cinéfilos. Sempre corajoso em manifestar as suas inquietudes frente a um mundo com signos enganadores de modernidade, Wenders manifesta seu inconformismo com perturbadora sagacidade, presença de espírito, inovação e constante busca de fórmulas inovadoras de expressão.

Mutante e suficientemente corajoso, nunca escondeu o seu fascínio pela cultura popular americana e seus ícones que povoam o nosso imaginário. Fascínio confesso com crítica, não deslumbramento; que nos enche de coragem, nos livra da culpa da estagnação e convoca a viagens e releituras. E nos enche os olhos e a mente com poesia e musicalidade, nostalgia e modernidade, olhando para o passado e para o futuro com a certeza de quem conclama mudanças no presente.

Aproveita a fama rapidamente criada como talento emergente numa Alemanha paranóica com o seu próprio futuro, mesmo como expoente do movimento Novo Cinema Alemão, parte para os Estados Unidos a fim de render uma série de homenagens a vários de seus ídolos. Uma ao ator e diretor Dennis Hopper, com O AMIGO AMERICANO (DER AMERIKANISCHE FREUND, 1977), outra aos diretores Nicholas Ray e Samuel Fuller, os três atuando nesse mesmo filme. Reinventa a sua modernidade com um filme neo-noir e envolve-nos ao mesmo tempo com a admiração pela novelista Patricia Highsmith, seu inspirado personagem Tom Ripley, e ainda presta homenagem indireta a Alfred Hitchcock que a adaptou no cinema com PACTO SINISTRO (STRANGERS ON A TRAIN, 1950).

A sinceridade de Wim Wenders é estimulante. A sua peregrinação americana prossegue surpreendendo. Os seus filmes envolvem espectadores com personagens e roteiros que são capazes de levar o martírio de um cinéfilo às últimas conseqüências. Retorno a Nicholas Ray, o mítico diretor de JOHNNY GUITAR (1954) e JUVENTUDE TRANSVIADA (REBEL WITHOUT A CAUSE, 1955) e roda com ele O FILME DE NICK (LIGHTNING OVER WATER, 1980), para registrar a sua morte lenta e real.

A inventividade de Wim Wenders permitia-nos escapes excitantes, mesmo provocando conflitos com ícones admirados em comum. Foi o caso na fascinante homenagem ao escritor de novelas policiais Dashiel Hammett, a alma do film noir, a um custo caríssimo. HAMMETT, de 1982, também foi rodado nos Estados Unidos e gerou conflitos com o produtor que tanto admiramos como cineasta – Francis Ford Coppola. Entre as tumultuadas filmagens e interrupções, volta à Europa para rodar O ESTADO DAS COISAS (THE STATE OF THINGS), em 1982. Sem que pudesse imaginar, esse filme se tornaria um símbolo de resistência contra a ditadura militar brasileira, depois de ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza. No dia 20 de outubro de 1984, com mais de mil pessoas lotando a sessão de O ESTADO DAS COISAS no Cine Metrópole, cinema infelizmente desaparecido, chegam os agentes da Polícia Federal com uma ordem para interromper a 8ª Mostra Internacional de Cinema.

Em O ESTADO DAS COISAS, uma equipe de cinema está em Portugal motivada pela própria autobiografia de Wenders, com as dificuldades de um cineasta em realizar o seu filme sem conseguir se livrar da opressão do produtor. Tudo começou um mês antes da 8ª Mostra ser inaugurada, quando partimos ao desafio ao governo em seu último ano de ditadura, processar a União e obtendo vitória judicial para poder, pela primeira vez em oito anos de existência, fazer um festival sem submeter a seleção dos filmes à censura prévia. A Mostra reagia por todos esses anos de humilhação. Uma semana depois, o governo federal cassaria a liminar e interromperia a Mostra para o espanto de todo o mundo. E justamente no curso da projeção de O ESTADO DAS COISAS… Li com voz embargada e lágrima nos olhos, diante de uma platéia espantada, a decisão judicial de acabar com a Mostra livre censura.

Enquanto isso, no auge da criação, Wim Wenders se refaria do impacto do filme americano anterior, ganhando a Palma de Ouro em Cannes de 1984 com PARIS, TEXAS. Impecável modernidade com roteiro de Sam Shepard sobre buscas e perdições, interpretações de Harry Dean Stanton e Natassja Kinski e música de Ry Cooder.

O admirável cineasta-cinéfilo leva-nos ao Japão pouco depois com o diário-documentário TOKYO-GA, em forma de peregrinação e reverência ao grande mestre Yasujiro Ozu. Foi Wenders quem abriu em 1985 os olhos de novas gerações ao cinema do grande mestre japonês. Observamos na obra de Wim Wenders a sua capacidade de despojamento, sempre se fazendo parecer muito menor diante dos ícones de sua (nossa) formação cultural. Com ele aprendemos sobre o grande poder motriz da humildade. Ao percorrer cenários japoneses e seus rituais tão bizarros quanto fascinantes, Wenders comporta-se com a disciplina de um pupilo e faz notar o quanto japonês e universal é o inestimável legado cinematográfico de Ozu.

A admiração por Wim Wenders foi crescendo a cada revelação e a cada surpresa de seus filmes. O mais emocionante de todos dessa fase foi certamente a sua antecipada demolição do Muro de Berlim com ASAS DO DESEJO (WINGS OF DESIRE, 1987). Anjos singelos atrevem-se a ignorar a existência do abominável muro e a sobrevoam indiferentes às fronteiras, atrás das almas que devem guardar. ASAS DO DESEJO foi, merecidamente, o Prêmio do Público da 12ª Mostra, em 1987, e inseriu-se imediatamente na galeria dos seus filmes para sempre cultuados. Inesquecíveis ainda os anjos enxergarem em preto e branco e só verem as cores ao virar mortais pelo ‘pecado’ de se apaixonar por seres vivos…

É notável também o igualmente surpreendente talento e a generosidade de Wim Wenders em prestigiar talentos musicais para agregar valores em seus filmes. “Minha vida foi salva pelo Rock’n Roll. Porque foi esse tipo de música que, pela primeira vez na minha vida, me deu um sentimento de identidade, o sentimento de que eu tinha o direito de aproveitar, imaginar e fazer alguma coisa”, revela Wenders em seu site oficial www.wim-wenders.com .

A galeria de músicos convidados para os seus filmes é imensa – Ry Cooder, Daniel Lanois, Willie Nelson, U2, Bono, Nick Cave, BAP, Wolfgang Niedecken, Ronnee Blakley e Lou Reed, além de conseguir o feito mundial de resgatar talentos em grupo como em BUENA VISTA SOCIAL CLUB, de 1998. Com esse documentário musical Wenders deu uma extraordinária sobrevida a um grupo extraordinariamente talentoso de músicos cubanos. Ou como fez ao resgatar a história de três bluesmen marcantes – Blind Willie Johnson (1902-1947), Skip James (1902-1969) e J.B. Lenoir (1929-1967), em A ALMA DE UM HOMEM (THE SOUL OF A MAN, 2003), seu longa dentro da série Blues, e que novamente venceu o Prêmio do Público, na 27ª Mostra.

Wim Wenders justifica a escolha dos três bluesmen por identificar neles características comuns: “estavam à frente de seu tempo, escreveram suas próprias músicas, eram cantores e instrumentistas completos e morreram desconhecidos e esquecidos”. Bastava isto para atribuir o Prêmio Humanidade da 32ª Mostra Internacional de Cinema a Wim Wenders. Ele enriquece com seus gestos e filmes a galeria dos indicados anteriores ao Prêmio Humanidade da Mostra, que foram Manoel de Oliveira, Eduardo Coutinho e Amos Gitai. E, portanto, atenção aos filmes escolhidos por Wim Wenders com carta branca. Finalmente a Mostra vê em cores o seu anjo da guarda.

Carta Branca à Wim Wenders
A ROTINA TEM SEU ENCANTO | Yasujiro Ozu
A SEREIA DO MISSISSIPI | François Truffaut
COMO EU FESTEJEI O FIM DO MUNDO | Catalin Mitulescu
BYE BYE BLACKBIRD | Robinson Savary
FIM DE VERÃO | Yasujiro Ozu
HOMEM DE LUGAR NENHUM | Patrice Toye
INVISÍVEIS | Vários Diretores
LONGE DELA | Sarah Polley
O CLONE VOLTA PRA CASA | Kanji Nakajima
O GAROTO SELVAGEM | François Truffaut
O PEQUENO SOLDADO | Jean-Luc Godard
OS PRIMEIROS ANOS DE WIM WENDERS | Marcel Wehn
PALERMO SHOOTING | Wim Wenders
TRÊS DIAS DE CHUVA | Michael Meredith
VALERIE | Birgit Möller
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FESTIVAIS

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